Atuando há mais de 20 anos como infectologista em Cuiabá, o médico Luciano Corrêa Ribeiro afirmou que nunca pensou que viveria momentos de tamanha gravidade e exaustão como experimenta atualmente durante o enfrentamento da pandemia da Covid-19.
Especialista do Hospital Santa Rosa, Luciano integrou a equipe que diagnosticou o primeiro caso da doença em Mato Grosso – em março do ano passado. Desde lá, vivenciou o primeiro colapso no Sistema de Saúde com a primeira onda da pandemia e agora, o momento considerado mais grave da doença no pais.
“Estamos exaustos. Nós acordamos às 6h e paramos quando dá. Não falo só por mim, mas por todos os colegas que estão na linha de frente. Todos nós estamos no nosso limite. [...] Quando damos alta a um paciente, cumprimos o nosso trabalho. Quando damos a notícia de uma perda, dói demais”, revelou o médico ao MidiaNews.
Segundo o médico, a doença se alastra de forma “grave e cruel” e ainda é necessário conscientizar a população para o uso de máscaras de proteção e cumprimento das medidas de distanciamento e isolamento social se quiserem dar um freio na proliferação do vírus.
“É um remédio amargo, muito amargo, que tem um impacto econômico gigante, mas se não houver medidas restritivas de circulação de pessoas, não conseguiremos controlar a doença. Não existe tratamento, não existe remédio".

É um remédio amargo, muito amargo, que tem um impacto econômico gigante, mas se não houver medidas restritivas de circulação de pessoas, não conseguiremos controlar a doença. Não existe tratamento, não existe remédio
A solução, segundo o profissional, é apenas uma: a vacina.
“O mais rápido possível. E qualquer vacina. Todas as vacinas, independente de qual País venha, funcionam”, disse o especialista.
Ao MidiaNews, o infectologista ainda relatou mais da sua percepção sobre a doença, medidas restritivas, políticas públicas eo processo de vacinação.
Confira a entrevista na íntegra:
MidiaNews – Nos seus mais de 20 anos de carreira como médico infectologista, o senhor imaginou que poderia viver uma pandemia como essa?
Luciano Corrêa – Nunca. Quando eu comecei a minha carreira como infectologista estávamos atendendo a fase crítica da Aids. Lá no Hospital Universitário Júlio Müller, que foi referência e ainda é para o tratamento de Aids, a gente viu muitos pacientes morrendo, mas era uma evolução mais controlada e arrastada. Nós também passamos pela epidemia da influenza H1N1 que teve em Cuiabá um surto, com alguns pacientes evoluindo para a forma grave da doença.
Então, sem dúvida nenhuma o que estamos vivendo aqui, eu só li em livros. Jamais um médico infectologista que atende doenças de transmissão imaginou que no século XXI, com toda tecnologia que o mundo tem, passaríamos por isso.
Uma doença que não tem controle, não tem tratamento padronizado. E ela vai evoluir e vai piorar.
MidiaNews – E nesse um ano na linha de frente do tratamento de pacientes com Covid-19, o senhor já chegou ao estágio de exaustão?
Luciano Corrêa – Todo nós estamos exaustos. Nós acordamos às 6h, e paramos quando dá. Essa noite, por exemplo, eu parei de trabalhar às 1h.
Não falo só por mim, mas por todos os colegas que estão na linha de frente. Todos nós estamos no nosso limite. A gente trabalha desde março de 2020 de forma contínua e ininterrupta.
Quando damos alta a um paciente, cumprimos o nosso trabalho. Quando damos a notícia de uma perda, dói demais. Temos convivido com o sucesso, que são diversas pessoas saindo. Mas também com o fracasso, que é ver as pessoas morrendo. Pessoas que, se não fosse pela pandemia, estariam entre nós. Eu perdi um amigo que frequentava a minha casa, eu cuidei dele, e ele veio a óbito. Isso dói.
MidiaNews - O senhor já pensou em desistir?

Todos nós estamos no nosso limite. A gente trabalha desde março de 2020 de forma contínua e ininterrupta
Luciano Corrêa - Já. Quando se tem a perda de um paciente. Nós, profissionais de saúde como um todo, fazemos o possível para que não aconteça, mas quando acontece a morte, dói. Algumas das perdas nas madrugadas desse último ano já me fizeram pensar se valeria a pena continuar nessa tarefa.
Por outro lado, no outro dia, há mais pacientes precisando da nossa ajuda e isso nos dá força para caminhar. E quando temos um resultado positivo, nós nos animamos.
MidiaNews – Doutor, estamos há um ano vivendo a pandemia da Covid-19 no Brasil. Hoje, mesmo com a divulgação da gravidade da doença, qual a recomendação faria a população?
Luciano Correia – Essa doença é grave, real e cruel. A população precisa entender que se não for feito o dever de casa, infelizmente não conseguiremos controlar a doença.
Se você for conversar com familiares de pessoas infectadas verá a dimensão da dor deles. O desespero de ver um paciente precisar de um leito de UTI e não conseguir arrumar. Eu recebo mais de 200 ligações para arrumar um leito de UTI. Eu não tenho esse poder mágico de poder arrumar leitos.
Os gestores – prefeitos e governadores – estão buscando alternativas, mas a quantidade de leitos é insuficiente para a quantidade de pacientes que estão se infectando. A única maneira de frear essa doença cruel é respeitar as medidas de precaução. Não há outra forma. É uso de máscara e isolamento.
É um remédio amargo, muito amargo, que tem um impacto econômico gigante, mas se não houver medidas restritivas de circulação de pessoas não conseguiremos controlar a doença. Não existe tratamento, não existe remédio.
O meu medo é surgir uma nova variante que poderá ser ainda mais agressiva. Se olharmos a curva epidemiológica do Brasil, verá que todos os estados estão aumentando a infecção. São Paulo, que é um Estado rico, não aguenta mais. E os estados mais periféricos? Isso fará com que o número de mortos seja ainda maior. E esse custo dói muito para quem está na ponta.
Conviver com a morte de maneira acelerada, descontrolada e fria, faz com que a gente vá para casa no fim do dia e reflita sobre tudo que está acontecendo.
Parabenizo todos os profissionais que estão ocultos, mas que em nenhum momento deixaram de prestar essa assistência. Gostaria de parabenizar todos os que estão se dispondo ainda a atender esses pacientes. Porque são verdadeiros super-heróis, na essência. Porque não é fácil trabalhar com essa patologia. Porque essas pessoas estão fazendo o seu máximo e, às vezes, não conseguem reverter a situação de um paciente grave.

Conviver com a morte de maneira acelerada, descontrolada e fria, faz com que a gente vá para casa no fim do dia e reflita sobre tudo que está acontecendo
Midianews – Recentemente, a secretária de Saúde de Cuiabá, Ozenira Félix, disse que se pessoas que desrespeitam as medidas restritivas “pudessem ver alguém mal com Covid na UTI, jamais fariam isso”. Na experiência do senhor, há diferença entre pacientes internados com Covid-19 e com outras síndromes respiratórias?
Luciano Corrêa – O principio patológico é o mesmo. Mas o paciente da Covid-19, quando tem complicações, é muito difícil de fazer seu manejo. É bem complicado. Envolve um desgaste físico e emocional gigante.
A fala da secretaria é verdadeira. Estimo que 90% dos internados hoje no Brasil são pacientes com Covid-19. Destes, 70% estão intubados, em ventilação mecânica, tendo que fazer manobras fisioterápicas agressivas, como virar de bruços (pronação). É uma doença complexa.
Se você conversar com um familiar que recebeu a notícia que tem um ente na UTI, verá a dimensão da dor. É uma angustia para saber o que esta acontecendo. Para nós que trabalhamos com paciente em estado grave todo dia, o tempo voa. Para o familiar parece uma eternidade. A angústia de aguardar uma notícia positiva e ela não chegar. E é por isso que temos que valorar os profissionais que estão nesse processo.
MidiaNews – E qual a saída para travar essa evolução? É a vacina?
Luciano Corrêa – Sim. A história da medicina diz que a única maneira de controlar a pandemia é fazer com que a população tenha acesso a essas vacinas. O mais rápido possível. E qualquer vacina. Todas as vacinas, independente de qual País venha, funciona.
Agora, com a liberdade dos estados e municípios em poderem comprar, a minha torcida é para que eles consigam trazer a vacina. E que ela chegue nos rincões do Estado, porque a Covid-19 não está só em Cuiabá. Esta nas fazendas, no interior do Estado.
MidiaNews – O que vemos é uma política de vacinação andando a passos lentos. Atualmente, cerca de 3% da população mato-grossense apenas foi vacinada. O senhor acredita no fim da pandemia?
Luciano Corrêa – Difícil imaginar. Eu nunca imaginei que viveríamos uma pandemia, só vi isso em filme. Eu acredito que nós teremos, sim, um controle da doença com a vacina. Agora, falar que vamos erradicar a Covid-19 ainda é cedo. Talvez nós passaremos a conviver com o vírus e faremos processos de imunização seriadas. Mas a luz no fim do túnel é a vacinação.

A história da medicina diz que a única maneira de controlar a pandemia é fazer com que a população tenha acesso a essas vacinas. O mais rápido possível
A população precisa perder o medo da vacina e parar de se basear em fakenews. E os gestores precisam fazer com que a vacina chega à população. O Brasil é um País continental, mas por outro lado, o sistema de vacinação no Brasil é referência mundial. Ou seja, se houver a vacina, um planejamento, teremos uma alta taxa de imunização.
MidiaNews - Para o senhor, houve uma condução equivocada das política sanitárias no Brasil, conduzidas pelo presidente Jair Bolsonaro?
Luciano Correa – Infelizmente, a doença foi politizada. O bem contra o mal. Muito do que acontece atualmente já foi previamente alertado por especialistas na área, como infectologistas, epidemiologistas, pneumologistas e intensivistas. A única maneira de se controlar a circulação do vírus seriam as medidas como o isolamento social e o uso de máscara.
E nesse momento, não serei eu a dizer a melhor a ser tomada, mas a gente precisa, sim, encontrar um ponto de equilíbrio do que é economicamente viável e do sistema de saúde. Por que o sistema está colapsado. Eu vejo que algumas condutas tomadas lá atrás, no sentido de negar a doença, fizeram com que colhêssemos os resultados hoje.
MidiaNews - No dia 3 de março, Mato Grosso decretou medidas mais restritivas de circulação de pessoas. Nesta semana, batemos o recorde de mortes (86) e de casos (3,4 mil) no Estado. Por que ainda não surtiu efeito? O senhor defende medidas ainda mais duras?
Luciano Correa – O controle da doença passa, sim, por restringir o fluxo de pessoas. Eu observo entre a população que ainda há uma baixa adesão ao uso de medidas preventivas como o uso de máscaras e o distanciamento. Penso eu que foi uma medida correta, necessária, mas ainda não é efetiva para o controle da doença. Talvez a gente venha sentir o reflexo disso daqui 15 dias.
MidiaNews – Como o senhor vê essa resistência das pessoas em obedecer as medidas de biossegurança?
Luciano Corrêa – O que observamos na prática é que as pessoas fazem muita reunião familiar. As pessoas acham que entre familiares não tem o vírus. A grande maioria da população ainda não conseguiu enxergar a gravidade da doença. Observo famílias inteiras se infectando e evoluindo para o óbito após uma reunião familiar. A gente não pode baixar a guarda.
MidiaNews - Há algumas semanas, o MidiaNews entrevistou o médico Maikon Ticianel, que atua na linha de frente da Covid-19, que nos disse na primeira onda os jovens foram infectados passaram a doença aos idosos e os mataram. Hoje, com a nova variante, os jovens é que estão sendo acometidos com a forma mais grave da doença. O senhor também tem essa percepção?

Eu vejo que algumas condutas tomadas lá atrás, no sentido de negar a doença, fizeram com que colhêssemos os resultados hoje
Luciano Corrêa – Nós temos observado que o perfil da população que tem se infectado agora está mudando. Em um momento, nós víamos pacientes idosos e que estavam no grupo de risco. Hoje, a gente tem se deparado com infectados sem nenhuma comorbidade e que evoluem para uma forma grave.
Essas novas variantes transmitem com maior facilidade e com muita agressividade mais complexa. Isso faz com que os pacientes sejam internados com maior gravidade e fiquem internados por um período maior. É um paciente que fica 20 dias internado, quando por outro lado tem uma fila aguardando também pela internação. Aí tem a sobrecarga no serviço de saúde.
MidiaNews – Já há um consenso entre a classe médica sobre medicamentos contra a Covid-19? Já há um novo protocolo de medicamentos?
Luciano Corrêa – É um assunto complexo. Costumamos dizer que na Covid-19 tem um breu, não há luz, quando se fala em tratamento. Não existe hoje um medicamento que cure a doença. Encontrar um remédio que mate o vírus e evite a progressão da doença, acredito que será difícil acontecer.
O que existe hoje são estratégias terapêuticas para diminuir a inflamação que o vírus desencadeia no organismo. Então, essas estratégias tem que ser individualizadas em cada momento de doença. É preciso que o paciente seja acompanhado por uma equipe multidisciplinar e essa equipe vai analisar estratégias – se o caso evoluir – para diminuir as complicações.
O que temos observado é que a população tem usado medicamentos que não tem efeito nenhum na doença. E quando chegam até a gente, já estão em uma fase crítica da doença, onde a gente pode oferecer muito pouco.
Alguns remédios pioram os efeitos da doença, e um exemplo disso é o corticoide, que se utilizado precocemente pode diminuir a imunidade do paciente e aumentar a carga viral, fazendo com que a doença se torne mais agressiva.
Se tem alguém que gostaria que tivesse um remédio milagroso seriam os médicos.
MidiaNews – O senhor foi quem cuidou do ex-vereador e médico Maurélio Ribeiro. Ele é um paciente que tomou as duas doses da vacina. Por que ele foi acometido pela doença?
Luciano Corrêa – Nenhuma vacina confere 100% da imunidade. O que temos que entender é que essas vacinas vão atingir 80% a 85% de imunização e temos que focar nesse percentual que é muito expressivo. Cerca de 10% a 15% poderão adquirir o vírus, mas temos que focar no ponto de vista de saúde pública, epidemiológico.

Alguns remédios pioram os efeitos da doença, e um exemplo disso é o corticoide, que se utilizado precocemente pode diminuir a imunidade do paciente e aumentar a carga viral, fazendo com que a doença se torne mais agressiva
As vacinas funcionam, têm um bom poder imunológico. E o que às vezes está acontecendo? É que muitos estão tomando a vacina já infectados, no período da incubação da doença, e não teve tempo para adquirir a imunidade necessária para a proteção do vírus.
O caso do Maurélio não é a regra, é a exceção. E não dá para analisar o caso do doutor Maurélio como falha da vacina. Pontualmente, ele teve uma intercorrência. A doença foi mais agressiva, mas imagino que se ele não tivesse tomado a vacina, poderia ter sido pior ainda.
MidiaNews – Qual a média de pacientes que se recuperam da doença?
Luciano Corrêa – A grande maioria dos pacientes que tem uma assistência médica direcionada e coerente para o tratamento da patologia tem uma chance de mais de 80% de evoluir bem, recebendo alta.
Mas isso ainda é relativo. A Covid-19 não tem uma regra, uma característica uniforme do acometimento dos pacientes. Então, o resultado do paciente depende das suas comorbidades, do tempo que ele demorou para chegar ao serviço de saúde. Isso que faz com que as pessoas venham a ter um desfecho ruim. Há cidades em Mato Grosso, por exemplo, que não tem suporte de saúde.
Mas nós tivemos, por exemplo, a perda do [senador] Major Olimpio, que estava em um serviço de ponta em São Paulo e acabou falecendo. Isso demonstra que independente do local, a doença é grave.
Fonte: midianews
Autor: CÍNTIA BORGES DA REDAÇÃO Foto MidiaNews